quinta-feira, 17 de abril de 2014

Um luxo

Por Anabela Fino, no jornal «Avante!»
Num tempo particularmente prolixo em declarações oficiais e afins, que tanto podem significar uma coisa como o seu contrário, cresce a sensação de que as palavras do nosso rico e vasto vocabulário afinal não chegam para exprimir os sentimentos que avassalam quantos se confrontam diariamente com míngua de tudo o que era suposto terem assegurado: um tecto que dá abrigo, o pão na mesa, a água na torneira, o gás no fogão, uma luz acesa, um salário condigno...
São luxos, senhores, são luxos, repetem-nos diariamente na televisão e nos jornais governantes, comentadores, empresários, especialistas disto e daquilo que não fazem a mais pálida ideia do que seja a vida dos reformados como aquela senhora – chamemos-lhe Lurdes – viúva ao fim de uma existência de muito trabalho e canseira para criar os filhos, que de um momento para o outro viu desaparecer a maior parte da reforma que já mal chegava para a farmácia e para a parca dieta, e hoje está obrigada à suprema humilhação de aguardar no canto do balcão do café do bairro, num silêncio que ensurdece quem a vê, a esmola do pão que sobrou e não pode comprar ou dos bolos de véspera que não pode comer – é diabética – mas que aceita para levar para os netos.
São luxos, senhores, são luxos, dizem os patrões e o Governo falando do salário mínimo nacional, essa miséria de retribuição a quem trabalha e que a todos devia envergonhar, agora transformado em isco eleitoral com a promessa de um mísero aumento há muito desactualizado e em moeda de troca para uma dose reforçada de exploração através do aumento do horário de trabalho, da flexibilidade, do trabalho extraordinário sem retribuição e o mais que a sede do lucro possa imaginar.
São luxos, senhores, são luxos, diz o Governo pela voz do ministro da Saúde enquanto fecha hospitais, valências e centros de atendimento em nome da modernidade e da eficácia, afastando eficazmente do direito à saúde – e assim os condenando objectivamente à morte – milhares de portugueses incapazes de suportar despesas de deslocação, sejam eles transplantados ou insuficientes renais, cardíacos ou portadores de qualquer outra doença manifestamente acima das suas possibilidades.
São luxos, senhores, são luxos, diz o Governo e o seu séquito em resposta aos protestos contra os cortes na educação, nas prestações sociais, nos salários, nas pensões..., acenando com a meta do défice como supremo objectivo e a promessa de um enorme «se»: se um dia o sol nascer quadrado e a Lua pentagonal e os astros bailarem e entoarem à meia-noite louvores à harmonia universal – parafraseando Gedeão – então, se e quando isso acontecer, talvez seja possível a suas excelências darem-nos a benesse desse luxo que é o direito a uma vida digna.
Resta um «pequeno» senão: até Roma, agora tão na moda com as citações em latim, acabou por arder apesar do seu pão e circo. Por cá temos um fogo (um luxo?) melhor – esse Abril que floriu em Maio e que continua aceso no coração do povo.

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