A
notícia correu mundo e fez correr rios de tinta. Merecidamente, sem
dúvida. Oportunamente, por certo. E se é legítimo supor que nenhum de
nós terá ficado indiferente ao facto de algo que é nosso, tão
genuinamente nosso que só nós o poderemos preservar, ser agora
reconhecido como um património de todos – sendo este todos a própria
humanidade –, não é menos legítimo admitir que a distinção dada a semana
passada pela Unesco ao Cante Alentejano terá suscitado sentimentos
diversos. Porque se é verdade que em abstracto todos nos podemos
congratular com uma decisão que nos honra e sobretudo nos presta
justiça, o facto é que mal se passa a frágil superfície do que
pontualmente nos une logo se descobre a profunda imensidão do que
realmente nos separa.
Sucede
que o Cante Alentejano não é «apenas» um canto polifónico. Reduzi-lo a
isso, por maior que fosse, seria esvaziá-lo da história, da cultura, da
luta que lhe deu e lhe dará vida, para o transformar numa mercadoria tão
descartável como qualquer outra.
Pode
o latifundiário, seja qual for o tom de voz, «alto» ou «baixo», sentir o
Cante como o operário agrícola movido pelo ideal da terra a quem a
trabalha, com justiça e dignidade? Não, não pode.
Pode
quem vive da exploração de outros homens sentir como o explorado o
Cante que nos fala do «Alentejo dos pobres / Reino da desolação» ou da
«terra vermelha / como bandeira sonhada»? Não, não pode.
Pode
quem condena o povo à miséria sentir como seu o Cante que nos fala do
amor «onde cabe o pária / a Revolução / e a Reforma Agrária / sonho do
Alentejo»? Não, não pode.
Pode
quem sonha com o regresso ao passado da opressão e da tirania entender
alguma vez por que escreveu o poeta «Nunca vi um alentejano a cantar
sozinho com egoísmo de fonte»? Não, não pode.
Poetas
houve, como Urbano Tavares Rodrigues e José Gomes Ferreira, aqui
citados, que entenderam o significado do Cante Alentejano em toda a sua
dimensão humana, social e política, e por isso tão bem o traduziram nos
seus versos. Não se tratou de um acaso. Tratou-se, isso sim, da
compreensão que advém de estar do mesmo lado da barricada, de assumir na
vida uma opção de classe, de escolher o caminho que levará um dia à
sociedade sem exploradores nem explorados.
A
marca de classe, tão profundamente marcada no Cante Alentejano que faz
parte da sua essência, não pode ser diluída no efémero sucesso mediático
e muito menos no fogo fátuo das feiras de vaidades. O Cante Alentejano é
a expressão das alegrias, das dores, das lutas, dos sonhos de um povo
que trabalha, sofre e resiste na certeza de que é possível um mundo
melhor e mais justo. É a história de um povo, o nosso povo, de todos os
povos do mundo. É a história de todos os que aprenderam – trabalhando e
cantando – que a força da luta, como no Cante, está em juntar vontades,
está no colectivo.
É esta maneira de cantar – e de lutar – que faz o Cante. Cantemos.
abraço.
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