quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A fala de Zacarias Guinote

Por Baptista Bastos, no Jornal «negócios»

Converso com Zacarias Guinote, neste fim de tarde. Zacarias Guinote é um velho tipógrafo, sábio, culto e sensato, que, no fascismo, se meteu em embrulhadas políticas. Foi preso, torturado e nunca desistiu. Leitor dos grandes clássicos do anarquismo mantém-se fiel aos ideais da "nova aurora." O rosto é um belo rosto enrugado. Um rosto claro e nítido, direi agora, emoldurado por longos cabelos brancos. Às vezes, parece-me que estou em frente de José Gomes Ferreira, o poeta, claro! Trabalhei com ele em jornais, o último dos quais o "Diário Popular", e gosto muito deste senhor altivo e altaneiro, quase nonagenário, sorridente e firme.

Diz-me: já atentaste bem nas caras deles? Nada têm que ver com as nossas caras. São caras de comida cheia, de boas camas e de boas vidas. Nunca decorei os nomes dos governantes, a não ser o do Vasco Gonçalves, homem de bem, e de quase todos os capitães de Abril. Depois, desisti. Eram caras iguais, nomes iguais. Gente sem sonhos e sem a grandeza que os sonhos conferem. Sabes aquela frase atribuída ao Bertoldt Brecht?, "Os homens são feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos." É uma boa frase porque corresponde à verdade. Tudo o que o homem faz para melhorar a condição humana, parte do sonho.

Estava a revelar-te que não fixei a maioria dos nomes dos que nos governaram. Mas conservei os de estes; e até consegui, através dos jornais e das revistas, retratos deles. Quero marcá-los e às suas indignidades. As indignidades estão afixadas nos rostos deles, já de si uma indignidade pegada.

Às vezes pergunto-me: como podem estes sujeitos praticar tantas malfeitorias sem um toque de consciência? Será que são tão deformados que não vêem o que estão a fazer? A miséria alastra, a fome é diariamente acrescida de outras fomes, há mais de um milhão de pessoas caídas no desespero do desemprego. E estes tipos não se comovem. Não podem ser felizes; não acredito que sejam felizes, eles, que semeiam tanta dor e tanto sofrimento.

Vou oferecer-te os retratos deles, que recortei e conservei. Observa bem esta gente. Que tem esta gente a ver connosco? Alguma vez passaram fome? Estiveram sem dinheiro por falta de trabalho? Esta gente não trabalha: tem empregos, o que é totalmente diferente. Vê que eles não se misturam connosco. Agora, até, como têm um medo dos diabos, fazem-se rodear de um monte de gorilas. Faço ideia de quanto aquilo custa. E quem vai pagar é o povo de quem eles se afastam. Eles não querem nada connosco. Eles não gostam de nós. Eles odeiam-nos.

Que podemos fazer? Vamos para as ruas, protestamos, fazemos greve, indignamo-nos, somos milhões, mas eles não se incomodam. Julgam que, pelo facto de terem ganho as eleições, o poder do voto permite tudo, mas não é verdade. O que é legal pode não legitimar. Legitimar a violência, o desdém pelos outros e pela sua opinião, exercer a prepotência são actos que têm de ser removidos. Não basta a desaprovação calma e serena, já vimos. Eles não ligam nenhuma a isso. Todos eles são coniventes com o crime de lesa-pátria. O crime de lesa-pátria não é só punido no tribunal da consciência colectiva. É castigado por lei. O crime de lesa-pátria é o que estes sujeitos estão a cometer. Olha bem para os retratos deles. Fixa-os e aos seus nomes. Não podemos deixar que o esquecimento os envolva e que as suas ignomínias escapem sem punição.
Claro que já passámos por muita coisa. Os últimos setenta anos foram terríveis, em Portugal. Já vinha de trás a história da nossa grande dor. Inquisição, perseguição aos judeus, impossibilidade de se ser feliz, cinquenta anos de fascismo e, depois de uma breve luz, isto, isto que nos aconteceu e acontece, as sombras de um desespero incontido, a impotência de nos vermos cercados por todos os lados, o infortúnio de havermos perdido referências e as esperanças que as referências nos dão.

Zacarias Guinote descansa, agora, da sua fala. Com oitenta e muitos anos, prova que a idade é somente um número, ou números, nada mais do que isso. Esteve na última manifestação, apoiado por um dos seus netos, apenas, como disse, porque está vivo e quer demonstrar que o está. Apenas. O que, já em si, é o bastante para aqueles que não desistem.

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