segunda-feira, 4 de março de 2013

Tortura

Por A. Marinho e Pinto, no jornal «JN»

OTribunal Criminal de Lisboa condenou recentemente dois inspetores da Polícia Judiciária a uma pena de dois anos e seis meses de prisão, considerando-os coautores materiais de um crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos praticado em março de 2000 contra um trabalhador ferroviário. O Tribunal decidiu, porém, suspender a execução das respetivas penas, por períodos de tempo iguais aos da condenação, com a condição de cada um dos condenados depositar mensalmente à ordem do Tribunal oitenta euros a fim de a quantia acumulada ser no final entregue à vítima.
Este caso, em cujo processo a Ordem dos Advogados se constituiu assistente, contém vários aspetos que devem ser realçados. De acordo com os factos dados como provados em julgamento, a vítima viveu «horas de terror» durante um interrogatório policial sem a presença de advogado. Foi espancado quando estava algemado com as mãos atrás das costas, foi obrigado a permanecer de pé, «sofreu uma chapada na cara», «foi socado por diversas vezes, designadamente, na zona do estômago, rins e costelas», sofreu diversas pancadas com uma ripa de madeira nos pés, até que a mesma se partiu, e «foi pontapeado quando caiu ao chão». Com esses atos os inspetores da PJ pretendiam que o trabalhador confessasse a autoria de um crime de furto que ele sempre negou ter cometido.
Tudo isso aconteceu no dia 2 de março de 2000, tendo a vítima sido entregue no estabelecimento prisional da PJ cerca das 02.30 horas do dia 3. Aí foi observado por um enfermeiro que verificou que a vítima se queixava de dores nas costas, no peito e no abdómen e que apresentava algumas escoriações e nódoas negras provocadas por agressão na Polícia judiciária. Pelas 19.15 horas desse dia, foi levado sob detenção ao Tribunal para o primeiro interrogatório judicial, tendo sido libertado cerca de 20 horas sujeito apenas a termo de identidade e residência e conduzido a sua casa. Ao ver o seu estado de saúde, a sua mulher pediu ajuda a um colega de trabalho para o levarem ao hospital, onde entrou pelas 21.39 horas, tendo aí sido verificado que o mesmo tinha algumas costelas partidas com edema, dor e dificuldade em respirar. Esteve no hospital até às 23.10 horas e às 24 horas apresentou queixa na esquadra da PSP. Os atos de tortura tiveram lugar durante um interrogatório levado a cabo por cinco elementos da PJ, mas, mais de 12 anos depois, apenas dois deles foram condenados.
Sublinhe-se que o mínimo que se pode dizer da investigação deste caso, efetuada pelo Ministério Público, é que ela constitui uma vergonha para essa magistratura e para a nossa democracia, pois revela até que ponto alguns magistrados estão indisponíveis para combater essas degenerescências. Com efeito, os atos de tortura foram denunciados ao MP no início de março de 2000, mas só em finais de 2004 os seus autores foram constituídos arguidos para cerca de dois meses depois o processo ser arquivado porque o magistrado do MP considerou, entre outras razões, que poderia ter sido a vítima a infligir os ferimentos a si própria ou então um terceiro a seu pedido. Qualquer coisa do género: «Ó amigo, por favor, parta-me aqui umas costelas que é para eu poder acusar uns inspetores da PJ». A própria sentença lamenta a «diminuta atividade investigatória efetuada em fase de inquérito (...) que inquinou de forma irremediável o apuramento cabal de toda a verdade e a responsabilização de todos os elementos com intervenção na prática dos factos».
É inadmissível que em pleno século XXI, num estado que se diz de direito e democrático, haja polícias que torturem pessoas para que confessem a autoria de crimes. Essas práticas só são possíveis porque há uma enorme rede de proteções e outras cumplicidades, sobretudo entre os magistrados mas também por parte do Poder Político. Atente-se que as recentes alterações das leis penais continuam a permitir interrogatórios policiais sem a presença de advogado e, sobretudo, permitem que as confissões prestadas perante os acusadores possam servir de prova perante os julgadores. Com leis assim, é óbvio que vai valer tudo para obter confissões.

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