quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Leitura na página de José Goulão no Facebook


                                       O LABORATÓRIO
Há coisas em que a tradição ainda é o que era. Durante muitas décadas, desde o pós-guerra, a Itália foi considerada como uma espécie de laboratório de manobras políticas tendentes a manipular a verdadeira vontade dos eleitores. Uma espécie de tubo de ensaio para receitas que, respeitando formalmente a democracia serviam (e servem) para a deturpar, prejudicando maiorias e beneficiando os interesses de elites.
Fica apenas um exemplo para encurtar conversa: os Estados Unidos da América, através da CIA, impuseram que o Partido Comunista Italiano (PCI) jamais entrasse no governo de Roma, mesmo que fosse maioritário, como chegou a acontecer. A única vez em que os comunistas asseguraram uma maioria governamental, mesmo sem entrar no executivo, isso custou a vida ao primeiro ministro, o democrata cristão Aldo Moro.
A tradição renova-se. Em Itália já não existe Partido Comunista, nem o Partido Socialista, ambos e outros foram amalgamados no chamado Partido Democrático como quando poderosas máquinas se ocupam dos destroços para que tudo fique compactado numa lixeira. 
Quando nasceu, gerado nas cambalhotas com que foram acompanhadas a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, o Partido Democrático olhou-se ao espelho e pretendeu ver o seu homónimo norte-americano. E de facto logo alinhou no colaboracionismo neoliberal, que como uma epidemia varreu todos os partidos socialistas, sociais democratas e aparentados, ditos “a esquerda” oficial. Por isso está hoje coligado com a direita para aplicar as receitas de Bruxelas e da Srª Merkel.
Ao que parece, porém, isso não chega. É preciso regressar ao laboratório. A nova vedeta da política italiana, a par do palhaço Grilo, é Matteo Renzi, presidente da Câmara de Florença, que há mês e meio tomou conta do Partido Democrático com um programa em que avultam o saneamento de dirigentes que ainda vinham do passado e a reforma do país.
Mal aqueceu o lugar, Renzi chamou o expoente da extrema direita Silvio Berlusconi, recém-transformado em cadáver político graças à expulsão do Senado por burlar o Estado, e ressuscitou-o. Na sede do Partido Democrático, ambos cozinharam uma nova lei eleitoral que tresanda a golpe de Estado contra a democracia através da institucionalização do bipartidarismo para que a Itália não fique “sujeita à chantagem dos pequenos partidos”. Registemos que a iniciativa partiu do Partido Democrático e não de Berlusconi, ao contrário do que incautos poderiam pensar.
Através da projectada nova lei eleitoral, o Partido Democrático de Renzi e a Forza Italia de Berlusconi preparam-se para tomar o poder, partilhando-o em alternância ditatorial. A semelhança com o partido único, porque prevalece o sistema de economia neoliberal, é absoluta.
A artimanha da lei é escabrosa: o partido que tiver 35 por cento transforma automaticamente esse pecúlio em 53 a 55 por cento, o necessário para governar com maioria absoluta. Se nenhum chegar aos 35 por cento haverá segunda volta, a disputar apenas pelos dois maiores ou por duas coligações que venham a formar. Claro que o eleitor terá direito a escolher no meio de uma nuvem de partidos, mas se quiser que o seu voto tenha utilidade só optando por um dos dois.
Sabemos que em França, Reino Unido, Alemanha, Espanha, as coisas já são assim, pratica-se, de facto, o bipartidarismo. Mas em Itália ensaia-se o caminho para o tornar regime institucionalizado. Isto é, doravante quando e onde o “arco da governação” neoliberal correr riscos amanha-se a lei eleitoral para que os riscos desapareçam. E dar-se-á como exemplo a mui democrática “estabilidade italiana”.

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