quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Os sonhos ainda são nossos

Por Baptista Bastos, no jornal «negócios»
Desço por uma estrada antiga. De um e de outro lado, pinheiros, eucaliptos, árvores de cheiro, fetos, flores lindíssimas. De vez em quando, uma ave cruza o espaço. Um homem curvado numa carroça sobe a íngreme estrada. Saúda-me, tocando nas abas do chapéu, retribuo com um aceno largo. Passa uma camioneta de passageiros. Passa uma rapariga montada numa bicicleta. Passa a brisa, passa o rumor das coisas vivas, passa o silêncio brando a amigo, e eu sinto-me muito bem. Há muitos anos que assim me não sentia. Não direi em paz, mas um pouco apaziguado. As lutas têm sido muitas, carrego um pouco os males do mundo, muitos anos me percorreram, o que eu desejava não aconteceu, mas trabalho naquilo de que gosto e que escolhi. Sou feliz? Não o direi. Mas poucos homens chegaram tão perto.

Viro à direita, guio mais uns quilómetros e aí estou em Proença-a-Nova. A vila é muito limpa e extremamente acolhedora. É um fim de tarde, domingo, esplanadas cheias de gente que sorri e conversa. Vou a um café, o empregado diz-me um "bom dia", e permanece um instante a observar-me: "O senhor, por acaso, não é?..." Nomeia-me, digo que sou quem ele nomeou, então por aqui?, é a terra do meu sogro, não vinha cá há muitos anos.

Trago sempre um livro, sabe-se lá porquê, deve ser do ofício, mas já tenho os olhos muito cansados, um dia destes tenho de ir ao oftalmologista, e poucas páginas releio sem que as letras se não confundam. A idade é um privilégio, pelo menos chegámos até ela e muitos não a atingem. Ora, cá estou eu, preparo-me para folhear um dos mais belos livros da grande esquecida, Irene Lisboa, "O Pouco e o Muito", que quase todos os que se dizem cronistas e escrevem nos jornais deviam ler com minúcia e cuidado. É uma edição antiga, da Presença, com um estudo notável de Paulo Morão, que tem dedicado parte substancial da sua vida académica a estudar e a divulgar a extraordinária autora.

"A Mulher que vai à Porta" é o texto que começo a ler, neste volume que Irene Lisboa subtitulou de "Crónica Urbana", e estou muito contente por estar neste acolhedor café de Proença-a-Nova, e gosto de dizer que estou contente por aqui estar. Então, alguém me toca no ombro: "Tu, por aqui?", a surpresa amigável de quem gosta de me ver. Há que anos, há que anos.


Andávamos com os mesmos sonhos, por caminhos diferentes. O prestígio da palavra revolução animava as nossas juventudes. Conhecemo-nos precisamente em Proença, e as oposições de princípio não nos afastaram. Metíamo-nos um com o outro por causa daquilo que pensávamos, e mantínhamos a força de uma amizade que nenhuma divergência beliscava. Foi para a Suécia, casou-se, descasou-se, fomos sabendo um do outro alimentando a fogueira dos sonhos que só a juventude permite acalentar.


Anos depois, ele regressou a Proença. Agora lembrávamos, sorrindo, os castelos idealizados e nunca traídos. Aguinaldo, na clandestinidade o camarada Sancho. Diz-me: "Tens de comer uns maranhos cozinhados pela minha mulher." O maranho, especialidade da região, é cozido dentro do bucho da cabra, com carne do animal, presunto, chouriço, arroz, hortelã, vinho do lavrador, uma delícia inigualável. Come-se com acompanhamento de vinho branco do Monte Barbo, e quem não saboreou o prato ignora o sabor de uma grande iguaria.

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