Por José Goulão. em JORNALISTAS SEM FRONTEIRAS
“Aqui dentro está tudo em guerra
por causa da Ucrânia”. Quem assim fala é um alto funcionário das comunidades
que se declara “farto de tanta birra e tanto amadorismo” a propósito da
“descoordenação total entre dirigentes da União” sobre o que fazer com a actual
situação ucraniana.
O desabafo foi feito depois do
acto solene em que Durão Barroso pôs mil milhões de euros dos contribuintes
europeus à mercê de Arseny Iatseniuk, o primeiro ministro não eleito de Kiev e
um dos principais responsáveis pela entrega do aparelho militar e de segurança
do país aos círculos neonazis e revanchistas.
Sobre a entrega desta verba aos
meios que se indignam quando são qualificados como “junta” no poder não há
grandes novidades. Diz-se que é para pagar as dívidas do gás natural à Rússia e
que em troca deve a Ucrânia realizar as reformas fiscais e estruturais que
muitos europeus não ucranianos bem conhecem,
principalmente os mais de 25 milhões no desemprego.
Porém, a “guerra” de que fala o
alto funcionário não é por causa deste assunto, que é pacífico porque “está no
ADN do golpe de Estado”, para usar uma expressão proferida pelo socialista
belga Philippe Bertrand, correndo o risco de ser insultado como perigoso
esquerdista. O mesmo Bertrand que se interrogou, em inocente conversa de café,
sobre o critério que têm os dirigentes europeus ao entregar mil milhões de
euros a um governo que dizem ser “transitório”, a menos de 15 dias de eleições.
“Só se já sabem o resultado das eleições”, murmurou o meu amigo belga.
O que está em causa nesta grande
guerra europeia de bastidores é “a confusão e a precipitação” de dirigentes da
União, e também da OSCE (Organização para a Segurança e a Cooperação na
Europa), agora que todos decidiram ser promotores de negociações entre Kiev e o
Leste da Ucrânia.
“O gabinete do presidente do
Conselho, Van Rompuy, diz as últimas do ministro alemão dos Negócios
Estrangeiros, Frank-Walter Steinmeier, por se ter deslocado a Kiev, propor
negociações sem ter informado Bruxelas”, explicou o alto funcionário. “Se calhar
o ministro alemão também ficou irritado quando deu de caras com Van Rompuy em
Kiev, igualmente para tratar de conversações entre ucranianos. Estavam ao mesmo
tempo na mesma capital a falar com as mesmas pessoas, sobre o mesmo assunto, e
não sabiam um do outro”, admitiu.
Como se não bastasse, prosseguiu
o meu interlocutor, o presidente da OSCE, o presidente suíço Didier Burkhalter,
saiu finalmente com o prometido “roteiro” à procura de uma solução na Ucrânia
que alegadamente proteja os direitos das comunidades de língua russa.
“Não sei bem porque razão”, disse
o alto funcionário das comunidades, “o ministro alemão alegou que foi a Kiev
tratar da aplicação deste ‘roteiro’,
talvez seja porque será mediado por um funcionário alemão, mas lá se arranjou
mais um pretexto para fogo cruzado, que agora também envolveu a OSCE – uma
catástrofe neste processo desde a história do envio de uma delegação formada
por militares de países da NATO”.
Um diplomata em serviço na NATO,
que tem igualmente uma visão muito céptica do modo como a Europa – e também os
Estados Unidos conduzem as mudanças na Ucrânia – não está muito a par das
guerras internas da União Europeia. Mas já percebeu que “o modo como decorreram
os referendos em Donetsk fizeram mais mossa na estratégia ocidental do que
seria de esperar”.
“Este desfile para Kiev só pode
ter uma razão: encontrar rapidamente uma solução negociada, ou arranjar
pretexto para acusar os russófonos pelo fracasso, para dar alguma credibilidade
às eleições presidenciais de dia 25”, disse o diplomata. Estas eleições “têm
dois riscos para os seus defensores e organizadores”, acrescentou. “São
facilmente comparáveis, em legitimidade, aos referendos no Leste e quem
considerou estes ‘uma farsa’ ridiculariza-se ao garantir que as outras são sérias,
montadas por um governo que nada tem de credível; ou o boicote às presidenciais
no Leste tem grande impacto, pelo que esta consulta pode ficar a ser conhecida
como ‘os referendos de Kiev’. Nenhuma das saídas é animadoras no estado actual
das coisas, e por isso quem há pouco rejeitava negociações agora diz que é
preciso negociar a todo o vapor”.
O diplomata da NATO sabe quem se
está “a rebolar de gozo com tudo isto: Putin”. “Considerava-me a última pessoa
a ser capaz de dizer isto, mas a Rússia tem dado um grande baile a estes
incompetentes. Não sei como lhes passou pela
cabeça que russos pudessem repetir no Leste da Ucrânia o que fizeram na
Crimeia. Também deveriam ter informações mais do que suficientes – é para isso
que existe a espionagem e não é tão barata como isso – para saber que os russos
não estão metidos na organização dos grupos do Leste, nem tencionam lá
meter-se. Não contentes com isso montaram aquela operação em Odessa de tal
maneira que juntar meia dúzia de vídeos amadores como quem soma dois mais dois
tira a limpo que aquilo foi feito, e mal feito, pela polícia secreta de Kiev, o
que não é uma grande recomendação profissional para os fascistas que tomaram
conta dela”.
Na opinião do diplomata da NATO,
“o maior erro de avaliação de todos cometido por Bruxelas – os Estados Unidos
jogam mais com a ameaça da força do que com a diplomacia e provavelmente também vão dar-se mal – foi o de admitirem
que a Rússia assumiria o papel de negociar em nome do Leste; a seguir, optaram
pela recusa de negociações alegando que os insubmissos não poderiam querer
fazer-se representar; agora andam à procura de negociadores depois de lhes
terem dado tempo para se legitimarem, por muito que tentem desacreditar os
referendos. Um desastre de uma ponta à outra”.
José Goulão, Bruxelas
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