quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Cantemos

Por Anabela Fino, no jornal «Avante!»
A notícia correu mundo e fez correr rios de tinta. Merecidamente, sem dúvida. Oportunamente, por certo. E se é legítimo supor que nenhum de nós terá ficado indiferente ao facto de algo que é nosso, tão genuinamente nosso que só nós o poderemos preservar, ser agora reconhecido como um património de todos – sendo este todos a própria humanidade –, não é menos legítimo admitir que a distinção dada a semana passada pela Unesco ao Cante Alentejano terá suscitado sentimentos diversos. Porque se é verdade que em abstracto todos nos podemos congratular com uma decisão que nos honra e sobretudo nos presta justiça, o facto é que mal se passa a frágil superfície do que pontualmente nos une logo se descobre a profunda imensidão do que realmente nos separa.
Sucede que o Cante Alentejano não é «apenas» um canto polifónico. Reduzi-lo a isso, por maior que fosse, seria esvaziá-lo da história, da cultura, da luta que lhe deu e lhe dará vida, para o transformar numa mercadoria tão descartável como qualquer outra.
Pode o latifundiário, seja qual for o tom de voz, «alto» ou «baixo», sentir o Cante como o operário agrícola movido pelo ideal da terra a quem a trabalha, com justiça e dignidade? Não, não pode.
Pode quem vive da exploração de outros homens sentir como o explorado o Cante que nos fala do «Alentejo dos pobres / Reino da desolação» ou da «terra vermelha / como bandeira sonhada»? Não, não pode.
Pode quem condena o povo à miséria sentir como seu o Cante que nos fala do amor «onde cabe o pária / a Revolução / e a Reforma Agrária / sonho do Alentejo»? Não, não pode.
Pode quem sonha com o regresso ao passado da opressão e da tirania entender alguma vez por que escreveu o poeta «Nunca vi um alentejano a cantar sozinho com egoísmo de fonte»? Não, não pode.
Poetas houve, como Urbano Tavares Rodrigues e José Gomes Ferreira, aqui citados, que entenderam o significado do Cante Alentejano em toda a sua dimensão humana, social e política, e por isso tão bem o traduziram nos seus versos. Não se tratou de um acaso. Tratou-se, isso sim, da compreensão que advém de estar do mesmo lado da barricada, de assumir na vida uma opção de classe, de escolher o caminho que levará um dia à sociedade sem exploradores nem explorados.
A marca de classe, tão profundamente marcada no Cante Alentejano que faz parte da sua essência, não pode ser diluída no efémero sucesso mediático e muito menos no fogo fátuo das feiras de vaidades. O Cante Alentejano é a expressão das alegrias, das dores, das lutas, dos sonhos de um povo que trabalha, sofre e resiste na certeza de que é possível um mundo melhor e mais justo. É a história de um povo, o nosso povo, de todos os povos do mundo. É a história de todos os que aprenderam – trabalhando e cantando – que a força da luta, como no Cante, está em juntar vontades, está no colectivo.
É esta maneira de cantar – e de lutar – que faz o Cante. Cantemos.

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