Devo dizer-vos que este livro de Sérgio de Sousa (escritor que tarda em ter o reconhecimento público que a sua peculiar, informada e culta forma de estar e exercer o ofício de escritor, amplamente merece) me devolveu o prazer da leitura, esse apelo de vertigem que não nos larga enquanto não chegamos à última página, prazer que já me vai faltando em relação a grande parte dos lusos dislates (estilo «chapa 5» do universo, menor, de uma entediante fasquia da literatura anglo-saxónica) que por aí anda a publicar-se apenas para trazer mais lixo a este nosso poluído mundo.
E isto, porque este seu livro, alguns contos, nos convocam para o que na literatura é essência e combustão: o claro sentido dos tempos, a lucidez, a denúncia das injustiças que povoam este nosso tempo, sem agitação panfletária, a cultura destilando no ponto, sem se empertigar em pose, a clarividência de um assertivo, questionador olhar sobre o mundo (até sobre o autor, que em alguns contos se despe, se passeia pelos campos extremados, estrumados de uma memória em permanente delíquio de vigília, permitindo desvendar parte do acervo que é bagagem perene de todo o escritor – embora o faça, como acontece em livros anteriores, com algum contido pudor e elegante parcimónia), as suas relações com a literatura, com a política, com os quotidianos ácidos que os vendilhões desta Pátria nossa nos impõem, tudo descrito através de uma prosa escorreita, segura que, sendo por vezes árida nas suas consonantes sintácticas (o autor evita o uso da metáfora, da adjectivação, da fórmula poética como matéria de exposição discursiva e a prosa atem-se, e bem, ao seu descritivo osso), não deixa de nos seduzir – provavelmente por tão enxuta, tão próxima da limpidez elementar, que este abrasivo modo de contar transporta.
Sérgio de Sousa não deixa de ser, mesmo neste livro que ao «fantástico» se atrela, mesmo quando o «real quotidiano» lhe traça a matriz primordial, o lídimo cronista de uma certa burguesia urbana culta e informada, que conhece o chão que pisa, se interroga mesmo quando vive e sente as contradições da sua própria condição, dos seus labirintos de classe, o desmoronar dos seus signos culturais, na incapacidade histórica e ideológica de lutar contra um sistema que lentamente a vai desapossando de valores, identidade, razão de ser. Uma burguesia que, autofagicamente, se ausenta de lutar, perdida num tempo de confusão rapace, vivendo a prazo o delírio do vórtice consumista em que se perde e esgota. Igualmente, da grande burguesia, a que ainda se resguarda da efémera vertigem dos dias e mantém os seus sinais identitários, os seus rituais, a sua profunda, conservadora marca de classe. Aqui, nesta denúncia, Sérgio de Sousa não sendo, embora, tão acutilante quanto o Eça, mas por essas águas do sarcasmo, da crítica mordaz, anda como se esse território lhe fosse chão propício e nele, nesse desnudar das «torres milenárias», a sua voz se erguesse mais solta, mais ágil, deslizando com profundo sentido da essência, do que vale a pena revelar, evitando sempre, com rigorosa ascese, o estereótipo.