terça-feira, 19 de junho de 2012

"O que se busca é uma via"

Por Baptista Bastos, no Jornal« negócios » do passado dia 15


Estou a revisitar os livros de André Malraux. Tenho de admitir, hoje, que a minha geração foi injusta e cáustica para o imenso escritor. O factor político determinou (sem explicar) o sentimento crítico. Tudo, agora, parece obsoleto. Aquela época foi fértil em contradições e a virulência saiu das baias morais e intelectuais para se transformar num ódio lamacento. As coisas talvez tivessem acalmado e os ajustes começaram. Tive grandes discussões com companheiros e camaradas meus. Líamos tudo e tudo contrariávamos. Possuo uma biblioteca imensa, porque aqueles tempos não permitiam atrasos. E tive a sorte de conviver com os maiores escritores, actores, artistas e cineastas portugueses da época. A idade da formação e do cimentar das convicções ética e ideológicas foi aí.

Os meus adversários na altura liam os mesmos livros que eu. O conceito de conhecimento não se coaduna com exclusões. Do comunista Aragon ao fascista Robert Brasilach, de Knut Hamsun a Ernst Junger, passando pelos grandes americanos, e, naturalmente, pela leitura da Bíblia, tudo passou pela minha curiosidade ardente. Sou um produto dessa gente toda. E de António Vieira, sempre folheado com mão diurna e mão nocturna. E mais do Camilo do que do Eça, devo dizê-lo.

A solidariedade e a fraternidade não estavam desempregadas. E o niilismo parecia estar removido para sempre. Não estava. O regresso do niilismo manifesta-se todos os dias e acentua os nossos pesares. Não importa se continuo na mesma luta; na mesma, não: em luta semelhante. Mas tenho pena de que as coisas estejam como estão. O abandono da grandeza de espírito, o esquecimento do grande monumento à humanidade e erguido pela humanidade, o desprezo pelas emoções e pela compaixão doem, e doem profundamente. Mas creio que nem tudo está perdido, apesar de assistir ao desespero dos mais novos e à negligência de muitos dos mais velhos.

"O mundo será religioso, ou não será", li em Malraux; e por isso tenho voltado a ele. O religioso como princípio de decência e estorvo ao niilismo, queria ele dizer. Recapitulando, afinal o que Dostoievski fez dizer ao mais velho dos irmão Karamazov: "Se Deus não existe tudo é permitido." Uma frase terrível no seu imperioso desígnio, que podemos aplicar, sem hesitações, à época e à inexistência de moral em que vivemos.

Ouvimos e lemos o que dizem e fazem os dirigentes europeus, e procedemos, instintivamente, a comparações. Depois, assistimos aos desaforos de miniaturas de gente, insultando e injuriando quase todos aqueles que abriram caminhos na História. Sei muito bem o que o Eclesiastes ensina: "Uma geração vem, uma geração vai…." Não se estuda, não se reflecte, não se abre uma pausa para meditar e ponderar. A exclusão e o apagamento reanimaram com esta nova ordem. Há dias, um preopinante, que escarmentei noutro local, caluniava o bispo das Forças Armadas, D. Januário Torgal Ferreira, por este dizer em público o que a maioria das pessoas diz em privado: este governo é constituído por gente desavinda com a integridade e com a competência. Poucas semanas depois, o prelado foi punido, ele disse: "linchado" na reforma, por delito de opinião.

Não é estalinismo, este método persecutório: tem origem na semente fascista, caracterizada e cauterizada pelo bispo. E que está aí, a florescer sem obstáculo, e notoriamente apoiada e estimulada um pouco por todo o lado, Portugal incluído. Não se defende a democracia como um todo, toleram-na como um meio. Quando ouço alguns políticos soletrar a palavra, penso que a maldição bíblica devia cair-lhe em cima e a boca encher-se-lhe de…

Desprovidos de experiência, apoiados pelo entusiasmo que o dislate cavaquista. A teoria da amnésia histórica é velha. Retornou, há anos, com o dr. Cavaco, quando, sem consciência do que provocava, incitou os mais novos a recusar referências e a construir os seus próprios passos. O turbilhão que se seguiu é conhecido. Derivaram em fazer saneamentos e em afastar velhos profissionais de todas as artes e ofícios. Está por fazer a história desse período sombrio. Sustentado pelos grandes grupos económicos, o cavaquismo não tinha deus nem fé, somente a permissão para fazer tudo quanto lhe apetecesse.

Apesar de as sombras negras pairarem por grande parte da Europa, apesar de tudo aparentar estar perdido, recorro a Manuel Alegre, que nos diz em "Nada está escrito": "Não é possível tornar semelhantes / as coisas que são incompatíveis. / O que se busca é uma via / tudo o mais é indecifrável."

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